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NESTE DEGREDO ONDE TUDO É CÁRCERE – I

UMA CAPELA, ALGUMAS CASAS. A passagem de padre Bento José Pereira por minha cidade foi meteórica, não mais que três anos, mas decisiva. Isto aconteceu há mais de dois séculos, quando eu nem sonhava em existir e meus antepassados maternos mal tinham chegado de Minas Gerais. A cidade era noutro lugar, duas léguas distantes daqui, duas léguas mais próximas da divisa com Minas.

Naquele fevereiro de 1821, quando o novo vigário avistou, do lombo da mula, os casebres do arraial antigo à sua frente — duas pequenas fileiras de moradias com a capelinha um pouco retirada —, fazia já quase duas semanas que cavalgava pelo Caminho de Goiás, vindo de São Paulo, passando por Jundiai, Campinas, Mogi-Mirim, Casa Branca. Praticamente cortou, de sul a norte, toda a província paulista, que com seus mais de duzentos mil quilômetros quadrados não tinha, então, mais de duzentas mil almas — um despovoado e silencioso sertão que em breve, algumas décadas mais tarde, se transformaria na barulhenta locomotiva da nação.

Não foi uma viagem fácil, naquele mês de chuva. Teve inimigos da mais variada espécie: insetos, poeira, aguaceiros, alagados, subidas (felizmente, não tão puxadas como na vizinha Minas Gerais). Os ribeirões tinham pontes, quase sempre em péssimo estado. O que não ocorria com os rios: se não ofereciam vau, a saída era atravessar de canoa com as cargas, enquanto as bestas iam a nado.

Padre Bento e o negro Manuel d’Angola, seu escravo, tomaram chuva, passaram frio, comeram carne seca. Armavam a rede para pernoitar em pousos imundos de tropeiros, a maioria cobertos de capim e sem paredes, que deixavam entrar qualquer vento e algumas vezes até chuva.

Vinha com ele, além de Manuel, um tocador de bestas, que comandava as três mulas com as bruacas cheias da pequena carga necessária para começar a vida nessa recém-criada freguesia do sertão do Rio Pardo. Naqueles ermos, com poucas décadas de povoamento, eram mais ou menos umas duas mil almas — um por cento das duzentas mil de toda a província paulista — que agora esperavam pelo novo “vigário colado”, esparramadas por sítios e fazendas, pois era ali que vivia a maioria das pessoas e a vida se resumia a poucas coisas, principalmente plantar roças e criar animais.

Quanto ao arraial à sua frente, o que o padre enxergava só confirmava o que já tinha ouvido, na capital, sobre a sede da freguesia. Quem vinha de uma São Paulo relativamente bem cuidada, com seus vinte mil habitantes, ruas calçadas e espaçosas, edifícios de taipa, pontes de pedra, conventos, hospitais, colégios, não podia mesmo ver com bons olhos aquele miserável arraial de pau a pique encravado no outro extremo da província, penetrado de terra vermelha até as mais fundas entranhas.

O padre via, não muito próximas à capela, algumas casas, se fosse possível chamar de casas aqueles ranchos inacabados. Da situação deplorável do lugar já tinham dado testemunho, diante do bispo, várias pessoas que tinham passado por ali, ainda na época do vigário anterior: outros padres, funcionários da Coroa, comerciantes.

Como quase todos os povoados que tinham surgido no Caminho de Goiás, o arraial do Bom Jesus dos Batatais não passava de um conjunto de casebres grosseiros, distribuídos ao longo de uma pequena e larga rua. Mais longe que o usual, porém, estava a pequena e não menos rude igrejinha, como se capela e casas não tivessem surgido do mesmo projeto urbanístico. Eis tudo. E só um pequeno número daquelas moradias, um pouco afastadas entre si, eram habitadas, nelas vivendo apenas uma ínfima parte dos moradores da freguesia.

O padre aproximou-se da igrejinha de duas águas, com uma grande cruz de aroeira ao lado. Ficava no centro de um grande pátio, onde havia sido enterrado, recentemente, vigário anterior, padre Manuel Arruda. Era pequena e não tinha aspecto de obra concluída, com as paredes de pau a pique não rebocadas.

Apeou da mula e, tirando o chapéu de copa alta e abas longas, fez uma rápida genuflexão aos pés da cruz. Entrou na igreja, cuja porta estava só encostada. O preto Manuel também apeou, mas permaneceu de fora, chapéu contra o peito.

Era um salão grosseiro, sem forro, travejado de madeiras roliças e toscas, sem alojamento para o vigário. A pequena matriz ainda nem concluída estava, e já parecia pedir reformas. Antes de entrar na pequena sacristia, espremida ao lado do altar, ajoelhou-se diante da pequena imagem do Bom Jesus, ao fundo da capela, e pediu com um longo suspiro, do tamanho dos quinze dias de estrada:

— Valei-me, Senhor, neste fim de mundo!

[Continua aqui].

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