O LAPSO DO PROFESSOR JORDÃO
Fiquei sabendo do fato numa das últimas conversas que tive com o Prof. Murilo Jordão, já aposentado, quando fui levar-lhe minha tese de doutorado finalmente transformada em livro e publicada pela própria editora da universidade (nenhuma editora comercial o teria feito, pois seria encalhe na certa).
Passou-me a xícara e perguntou-me, enquanto enchia a sua:
— Você está lembrado de minha aula no concurso de titular?
Lembrava-me muito bem.
— Uma aula memorável — disse-lhe, enquanto pingava o adoçante.
Foi há alguns anos. Fugindo da rotina acadêmica, o professor deixou de lado o ponto que a banca tinha sorteado para a aula — as soníferas correntes da crítica literária contemporânea —, saindo-se com uma bela e até diria comovente confissão sobre como se aproximou da literatura, que deixou sua vida “cada vez mais cheia de tudo”.
Foi a partir deste verso de Manuel Bandeira que o professor começou a falar de sua aventura entre livros: uma vida que, depois da adolescência, teve como principal dieta o que lia nos poemas, romances, contos, peças de teatro, ensaios. Uma vida toda dedicada às letras e ao seu ensino.
As paixões humanas no fundo eram poucas, dizia o velho mestre — amor, ódio, alegria, tristeza, inveja, ciúme, cobiça, espanto, mais duas ou três. A maneira, porém, como apareciam em cada obra literária, vividas em situações diferentes por pessoas diferentes — fazia questão de dizer pessoas, em vez de personagens —, ampliavam quase infinitamente aquele pequeno quadro. E nossa ilusão de conhecimento do mundo aumentava a cada página virada, a cada metáfora ou pessoa que surgiam na “janela iluminada da leitura”, deixando o leitor atento “cada vez mais cheio de tudo”.
Nos cinquenta minutos da aula, Prof. Jordão passou em revista os livros de sua vida, aqueles que tinham sido “os degraus da escalada”. A imagem era do grego Nikos Kazantzakis, a quem não apreciava nem como escritor nem como marxista, mas nosso professor era de uma época em que a universidade ainda podia contratar homens que gostavam de livros e sabiam civilizadamente respeitar diferenças no acidentado terreno das ideias.
— Meus degraus foram ótimos. Meu espírito é que era fraco das pernas — disse ele na aula, virando um gole de água mineral.
Com ajuda do velho relógio de bolso, que veio de Portugal com o pai, arrematou seu tempo com uma chave de ouro, de efeito irresistível, afirmando que definitivamente não existiam correntes críticas, mas indivíduos solitários e limitados que reagiam pessoalmente às obras lidas, após anos e anos de convívio com os grandes autores. Voltou a mencionar o velho Anatole: “A crítica é uma aventura do espírito entre obras-primas. O resto é pífia abstração, pseudociência”. Deu um discreto tapinha na mesa e levantou-se: foi cumprimentar, um a um, os membros da banca.
Não sei o que pensaram os cinco examinadores. Pelo menos três, ali, eram notórios partidários da crítica dita científica. Mas o certo é que Prof. Murilo Jordão, o mais velho dos nossos colegas, foi aprovado com nota máxima: saiu do pequeno auditório como Professor Titular, o pódio mais alto da universidade.
— Sem favor algum, foi a melhor aula que ouvi em minha vida — confessei-lhe, deixando a xícara pela metade sobre a mesa de centro.
— Pois garanto que foi a pior aula da minha vida — sorriu entre rugas, acendendo um cigarro.
Diante do meu espanto, começou a contar o que realmente aconteceu naquela tarde. Como pessoa metódica, tinha preparado os doze pontos do programa, um a um, nos dois meses que antecederam o concurso. De modo que as vinte e quatro horas que teria entre o sorteio do ponto e o início da aula, seriam só para passar em revista o roteiro já cuidadosamente elaborado.
Foi o que fez. Quando o presidente da banca deu sinal verde para o começo da aula, o velho emudeceu:
— Fiquei sem voz, meu caro — confessou-me naquela tarde. — Sem voz e ação.
Jurei-lhe que não me lembrava de nada que pudesse insinuar um repentino “branco” na memória do professor.
— Mas foi precisamente isso que se deu. Um branco total, um branco e moby-dickeano campo de neve condensado em alguns segundos, talvez meio minuto, espertamente disfarçados. O branco antecipador da morte… Concorda que a morte é mais branca do que preta?
— Plenamente, professor.
— Não sabia o que dizer — ele continuou —, embora os tópicos estivessem bem à minha frente, na folha de almaço: formalismo russo, new criticism, estilística, estruturalismo, estética da recepção, desconstrucionismo, e outras bobagens do gênero. Não sabia mais o que significava aquilo. Sorte que Deus me iluminou depressa e comecei aquele improviso sobre os livros da minha vida, no fundo uma grande malandragem, concluindo com a negação veemente do que fiz durante toda a minha vida: crítica literária acadêmica…
Prof. Jordão gargalhou longamente, puxou uma tragada sincera e prosseguiu:
— No fundo, sempre pensei assim, mas nunca tive coragem de assumir minha íntima boemia literária. De súbito, na hora H, alguns meses antes de me aposentar, em minha provavelmente última aparição pública, o subconsciente aproveitou-se de uma falha em minha máquina mental, já a caminho da senilidade, e tirou as rédeas da mão da consciência, fazendo com que dissesse aquelas coisas temerosas, verdadeiras mas temerosas, pondo em risco o próprio concurso. Um desabafo involuntário, que depois assinei de bom grado na frente e no verso. Não passo de um velho, velhíssimo discípulo da vida, como diria o grande Ungaretti. Saiba que a velhice tem lá suas vantagens, sobretudo a velhice da mente!
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